Prepare e abra o seu coração para as coisas que ele vai contar. Ele é mineiro, mas vem lá de Goiás. Dom Inácio Maria é o prior do Mosteiro de São Bento, em Mussurepe, na Baixada Campista, reaberto agora, o que é um marco para o centenário da Diocese de Campos. A missão evangelizadora e catequética do mosteiro começou em 1648, com a chegada à região de frei Fernando, religioso que deu início ao apostolado dos beneditinos.
No prédio com mais de três séculos de história, Dom Inácio, de apenas 43 anos, acumula uma rica história de vida, fé e cultura. Quando se pergunta o que é ser monge, ele cita o filme “O Nome da Rosa”, baseado no romance de Umberto Eco, e mostra ser antenado com os tempos atuais.
Diz que as portas do mosteiro estão abertas para quem quiser conversar com um monge, aprender mais sobre o mosteiro e, também, sobre a cultura beneditina.
Sabe muito bem a importância não apenas religiosa, mas também cultural e histórica do Mosteiro de São Bento. Diz ser impossível falar de fé sem falar de cultura e espiritualidade. “A fé não é algo puramente abstrato, que está dentro de nós”.
O senhor assume um dos maiores legados religiosos do país, o Mosteiro de São Bento. Como vê esse desafio?
Sinto-me lisonjeado em estar não apenas residindo, mas revitalizando e sendo uma pedra viva neste mosteiro. É certo que nós, enquanto monges, não contamos com apenas nossas forças e nossos esforços, mas com a graça de Deus, que se manifesta no dia a dia. Os desafios sem sombra de dúvidas são grandes, mas maior é essa graça. O apoio da Ordem de São Bento, de forma particular da Congregação Beneditina do Brasil, de especial dos reverendíssimos dom arquiabade Emanuel d’Able do Amaral, abade presidente, e de dom abade Filipe, abade do Mosteiro do Rio, assim como de tantos outros monges, nos motiva e nos impulsiona a continuarmos a evangelização beneditina que aqui se iniciou há tantos anos. Tudo isso, somado ao carinho que temos recebido da comunidade local, assim como de diversos membros da Diocese e da cidade de Campos dos Goytacazes, alavanca nosso desejo de fazermos um trabalho para “que em tudo seja Deus glorificado”, como nos ensina a Regra de São Bento.
São mais de três séculos, constando que o mosteiro é de 1648. Esse legado é, para o senhor, uma grande porção da história do catolicismo no Brasil?
Sem sombra de dúvidas. A Ordem de São Bento era muito querida pela Coroa Portuguesa, que desejou que os monges viessem para o Brasil para promover não apenas a fé, mas a cultura e o desenvolvimento humano em todas as suas áreas. Pelo fato dessa edificação beneditina remontar ao período colonial, carrega consigo uma enorme porção de histórias, de uma espiritualidade que não ficou presa apenas nas paredes deste prédio que chamamos “mosteiro”, mas que foi além e expandiu, trazendo diversos elementos não apenas cristãos, mas próprios da Ordem de São Bento que ajudou a moldar o caráter de muitos cristãos católicos e ainda hoje contribui para a formação histórico-religiosa de muitos dessa região e de diversas localidades do Brasil.
Está prevista uma missa mensal para os ciclistas de Campos que pedalarem até o mosteiro. Isso é uma forma de aproximação com a comunidade campista?
O mosteiro deve sempre procurar meios e caminhos para que, dentro do “ora et labora” (“reza e trabalha”), pilares da vida beneditina, esteja próximo das pessoas, não apenas os cristãos católicos, mas da sociedade como um todo. Ouvindo algumas pessoas comentando sobre o desejo que houvesse uma pedalada ligada a alguma das tradições regionais, amadureci junto com a comunidade monástica essa ideia, de forma a englobar, ainda, mais a comunidade, visando duas realidades: aqueles que conhecem, estarem mais próximos, e aqueles que não conhecem, se aproximarem. Afinal de contas, a casa de Deus deve ser o local onde todos se sintam acolhidos em suas diversas realidades, encontrando um local de elevação espiritual e humana.
Existe uma figura caricata de monge. O senhor tem apenas 43 anos. Daria para passar para as novas gerações o que significa ser monge hoje?
O imaginário das pessoas atualmente ficou muito povoado pela figura do monge como alguém velho, ranzinza, de uma barba bem longa branca, com uma voz sempre muito dura e com palavras mais duras ainda. Isso se deu por vários motivos, principalmente com o advento dos filmes, entre os quais temos como grande exemplo “O Nome da Rosa”. Contudo, ser monge é estar unido a Deus, estar profundamente conectado à espiritualidade. E como uma pessoa que é conectada a Deus, que é amor, bondade, a suma e verdadeira alegria, pode ser uma pessoa ranzinza? Seria uma grande contradição, mostrando claramente um nível de insatisfação com a vocação que escolheu. Estamos no mosteiro de forma livre e espontânea. A disciplina do mosteiro existe para regular nosso dia a dia, seja externamente, nos trabalhos e estudos cotidianos, seja internamente, como horário de levantar e dormir, para estarmos dispostos e isso não comprometer nossa saúde física. Vivemos num mundo onde se está cada vez mais sem referencial e o monge deve ter um referencial todos os dias, uma rotina bem equilibrada, que vai contribuir para que ele produza frutos na e para a vinha do Senhor. Além disso, a seriedade e gravidade do monge em determinados momentos revela que ele está sempre na presença de Deus, que tudo vê e provê. Os momentos de diversão, que também temos dentro do mosteiro, são permeados dessa gravidade. Até nosso riso está ligado à espiritualidade. E, hoje, mais do que nunca, a vida monástica incomoda um mundo sem regras, sem normas, sem referências e sem Deus. Ser monge é buscar endireitar-se, modelar-se para não apenas ser um cristão melhor, mas uma pessoa melhor, um cidadão melhor.
A reabertura do mosteiro acontece exatamente quando a Diocese de Campos completa 100 anos. O bispo dom Roberto está entusiasmado com isso?
Dom Roberto tem sido um bom pai e pastor para nós, monges daqui do Mosteiro de São Bento. Sempre muito solícito e atento às nossas diversas necessidades, tem se mostrado um grande entusiasta dessa reabertura. Poucas são nossas palavras para agradecê-lo por todo o carinho que tem demonstrado para conosco e por todas as manifestações de incentivo. Para nós, é uma honra e sinal de benção estarmos reabrindo o mosteiro nesse marco histórico também da Diocese de Campos.
O senhor e outros cinco monges são formados no Mosteiro de Nossa Senhora da Ternura. Qual a origem de Nossa Senhora da Ternura?
O Mosteiro Nossa Senhora da Ternura começou como um mosteiro cisterciense e, posteriormente, em acordo e conformidade com as autoridades beneditinas, mudou de observância, passando a ser um mosteiro beneditino. A sua fundação está ligada com o desejo de propagar a Ordem de São Bento em algumas regiões onde essa espiritualidade não era tão conhecida, assim como a vida monástica. Contudo, devido a diversas circunstâncias, viemos para Campos e, aqui acolhidos, ajudaremos a expandir ainda mais o conhecimento da vida beneditina e a fé, para que muitos encontrem em nosso modo de vida um caminho de santificação.
Como preservar a tradição da espiritualidade monástica nos tempos de hoje?
Existem várias formas de preservá-la, mas sempre atento, também, a algumas mudanças do tempo, em que conservamos principalmente a essência, mas com as modificações necessárias. E, antes de tudo, se faz necessário uma disposição de mente, corpo e alma para que elas sejam preservadas, pois estamos num mundo de constante desconstrução. Algumas tradições que são fundamentais de serem preservadas é o uso do hábito, que nos distingue como monges e mostra que, desapegados das coisas desta terra, buscamos as realidades celestes. A disciplina, a hierarquia e o silêncio também são elementos importantíssimos. E claro, sermos conscientes de que caminhamos por uma estrada que muitos já trilharam antes. Ser monge é saber quem você é como indivíduo e também no coletivo, de saber o que é a Ordem, quem são os expoentes e seus valores. Sem isso, fica impossível preservar qualquer tipo de tradição.
O senhor defende o diálogo da fé com a cultura e a espiritualidade? E como isso é feito?
É impossível falar de fé sem falar de cultura e espiritualidade. A fé não é algo puramente abstrato, que está dentro de nós. Dentro da Sagrada Escritura, encontramos a citação da Carta de São Tiago que diz que “a fé sem obras é morta”. Ela deve se manifestar de forma concreta fora de nossos corações, seja no amor ao próximo, na caridade, seja promovendo o conhecimento, o acolhimento, a possibilidade de uma melhoria de vida, seja para os próprios monges, seja para aqueles que recorrem ao mosteiro. Os mosteiros, por exemplo, através dos monges copistas, ajudaram a preservar obras antiquíssimas, sejam elas de cunho religioso ou não. Além disso, podemos citar as hospedarias e o cuidado no acolhimento ao hóspede, que, segundo nossa Regra, deveria ser recebido como o próprio Cristo. Isso ajudou que, no futuro, os hotéis surgissem com algumas diretrizes próprias da vida monástica, mas traduzidas em outras palavras. Os monges, apesar de viverem em clausura, sempre estiveram muito conscientes do mundo ao seu redor, chegando, inclusive, a fazerem pequenas críticas sociais e eclesiásticas em iluminuras e pinturas, principalmente na Idade Média. Esse afastamento do mundo contribui para que o monge tenha uma visão mais ampla de tudo e possa direcionar seus conhecimentos e forças em locais que consideram mais certeiros e proveitosos para o desenvolvimento do ser humano.
O senhor e os demais monges aceitaram o desafio de dar continuidade à missão evangelizadora e catequética iniciada em 1648, com a chegada do primeiro monge à região, frei Fernando?
Estamos aqui de corações abertos e braços disponíveis a darmos continuidade ao que não apenas o frei Fernando fez, mas o que tantos monges que aqui estiveram fizeram, com características próprias de nossa comunidade. Nosso objetivo também é fazer um intercâmbio: aprenderemos com aqueles que aqui residem e conviveram com as gerações anteriores, mas também passaremos para frente nosso conhecimento, nosso modo beneditino de ser, com as singularidades dessa comunidade.
É um simbolismo?
A memória coletiva aqui dos monges é muito forte e presente, quase palpável. Isso nos enche de alegria, pois percebemos que a vida monástica, perpassando longos séculos e diversas realidades da História, ainda faz sentido para um número sem fim de pessoas. Inclusive, isso nos enobrece, de certa forma, pois nossos antecessores foram muito preocupados com o bem-estar espiritual, mas também social de cada um que acorria a eles. Isso é um legado cujo valor é imensurável.
Resgatar a história é uma das prioridades?
Não apenas resgatar, mas projetar o futuro com passos mais sólidos, enraizados e conscientes do passado. Como monges, devemos olhar o passado com carinho, mas com grande gravidade e reverência. Para sermos pessoas melhores e construirmos uma sociedade mais evoluída em todos os sentidos, é importantíssimo conhecer a História. O meu desejo, assim como dos outros monges que aqui moram, é resgatar a história não apenas do mosteiro e de seus monges, mas da cidade de Campos, revestindo-nos de toda a cultura local, promovendo essa belíssima e rica região em suas diversas facetas.
Quando efetivamente o mosteiro estará aberto para visitação?
A igreja do mosteiro já está aberta para visitação, todos os dias, de 6h da manhã às 18h. Aqueles que desejarem também podem participar conosco das Santas Missas, que acontecem diariamente: de segunda a sábado, às 6h30 da manhã, e aos domingos, às 11h. Para mais informações, podem entrar em contato pelo WhatsApp oficial do mosteiro: (22) 98139-0270 ou pelo nosso Instagram oficial: www.instagram.com/mosteirodecampos. Por meio desses contatos, é possível marcar visitas guiadas, nas quais se pode conversar com um monge, aprender mais sobre o mosteiro e também sobre a cultura beneditina.