Bárbara Rodrigues Maranhão vivia um relacionamento com Laysa Brito dos Santos Nascimento que durava dez anos – cinco dos quais marcados por tentativas para engravidar. Duas fertilizações in vitro com os óvulos da esposa implantados nela não deram certo. Foi quando veio a ideia de fazer o que ficou conhecido como inseminação caseira.
“Inicialmente ela não queria engravidar, mas depois da segunda tentativa, foi dela a iniciativa de procurar no Facebook onde há muitos grupos sobre esse assunto. Foi quando, depois de quase um ano estudando o tema, descobrimos um doador, fora do nosso círculo de conhecidos, com boas indicações e resultados positivos. Conversamos e ele topou ser o doador”, disse Bárbara.
As duas foram entrevistadas pela psicóloga e pesquisadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) Roberta Gomes Nunes para o documentário “E se (não) for inseminação caseira” – que integra a tese de doutorado “Uma análise cartográfica da inseminação caseira: caminhos possíveis para maternidades lésbicas”, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ).
A inseminação caseira é um procedimento de fecundação realizado sem conjunção carnal e sem o intermédio de um profissional médico, utilizando sêmen doado por um terceiro coletado em frascos descartáveis e inserido com a ajuda de seringas. A também chamada “autoinseminação” acontece fora de clínicas especializadas, geralmente por casais que não possuem condições financeiras para arcar com os altos custos dos procedimentos médicos de reprodução assistida.
Além das inúmeras discussões sobre os riscos sobre transmissão de doenças, uma consequência pós-nascimento diz respeito ao registro civil das crianças geradas por inseminação caseira. De acordo com o Provimento 149/2023 do CNJ, para o registro civil e emissão da certidão de nascimento de crianças geradas por técnica de reprodução assistida é necessário apresentar, entre outros documentos, uma declaração com firma reconhecida do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana assistida onde a inseminação artificial foi realizada – algo que não existe na inseminação caseira.
Mais do que isso: uma resolução do Conselho Federal de Medicina estabelece o anonimato na doação para evitar disputas legais; e duas leis proíbem a venda de sêmen. Uma situação bem diferente da constatada por Bárbara.
“No nosso caso, o único contato com esse doador foi no dia da inseminação. É claro que cada casal vai agir de uma forma. Tem casal que recebe o doador na própria casa. Nós não fizemos isso. Foi no Airbnb. Não queríamos que ele soubesse quem éramos nem que tivéssemos contato. Tem gente que dá dinheiro para o doador. O nosso não. A gente só pagou a passagem dele de sua casa até onde eu estava”, explicou.
No caso de Bárbara e Laysa, foi necessário fazer um alvará judicial ainda durante a gravidez para assegurar o registro em cartório quando a criança nascesse. Uma saída para enfrentar a lacuna existente na legislação. O trâmite foi bem mais ágil do que um processo comum.
“A gente achava que precisava pagar um advogado e que o doador teria que fazer um documento abrindo mão da paternidade. Preenchemos um documento contando de como foi feito e como a gente se preparou. Fizemos um resumo a mão, fotografamos e mandamos por zap para eles. Um belo dia eles marcaram a audiência. Foi muito simples, fácil e rápido. A gente demorou exatamente um mês do dia que deu entrada ao dia que pegamos o documento para o registro”, disse Bárbara.
Raquel Chrispino, juíza-auxiliar da Vara de Registro Civil Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) e vice-presidente do Fórum Permanente da Criança, do Adolescente e da Justiça Terapêutica, relata que muitas vezes já se deparou com situações nas quais é necessário aplicar analogias e mecanismos jurídicos para que as situações não fiquem sem uma solução.
“Nós temos que acolher no Direito todas essas famílias sem esses cortes discriminatórios de gênero, classe ou raça, para podermos preservar histórias. Esse fenômeno precisa ser naturalizado e acolhido socialmente para que as pessoas possam crescer em espaços onde elas se sintam à vontade”, ressaltou.
Para o juiz André Souza Brito, vice-presidente do Fórum Permanente do Direito da Antidiscriminalização da Diversidade Sexual e da Justiça Itinerante do TJRJ, que ratificou o alvará judicial para Bárbara e Laysa, o caminho para a solução desses casos é a adequação da legislação brasileira.
“O que importa é reconhecer que as famílias se modificaram, que encontraram meios alternativos para superar a falta de condições financeiras para realização do sonho da maternidade e que este projeto parental foi pensado e executado por uma unidade familiar e que os filhos gerados a partir daí devem ser amparados pelo Poder Judiciário, reconhecendo as mudanças sociais. Deve, ainda, ser destacado que se trata do projeto das duas mães, não sendo admitido que, no futuro, a maternidade seja questionada”, disse o magistrado.
STJ
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teve de decidir se era possível aceitar a maternidade de uma mãe não biológica de criança gerada pela inseminação caseira em uma união estável homoafetiva – e incluir o nome dela na certidão de nascimento. A relatora do caso, Ministra Nancy Andrighi, votou pela inclusão do nome da genitora não gestante no documento.
“Conquanto o acompanhamento médico e de clínicas especializadas seja de extrema relevância para o planejamento da concepção por meio de técnicas de inseminação artificial, negar o reconhecimento da filiação gerada de forma “caseira” seria negar o reconhecimento de famílias que não possuem condições financeiras de arcar com os altos custos dos procedimentos médicos. Desigualdade social que não poderia ser ratificada pelo Poder Judiciário”, ratificou a ministra no voto seguido pela Terceira Turma do STJ. Além disso, ficou verificado que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por meio de procedimento sem acompanhamento médico, chamada inseminação artificial “caseira”, ou “autoinseminação”.
Para a psicóloga e pesquisadora Roberta Gomes Nunes, há muito desafios jurídicos para o reconhecimento de casais de mulheres como mães sem a necessidade de intervenção judicial – sem falar nas preocupações com o anonimato do doador e com o possível envolvimento posterior desse terceiro na vida da criança.
“A inseminação caseira, apesar de ser uma alternativa viável, ainda opera em um contexto de desigualdade de gênero e vulnerabilidade para as tentantes. São necessárias políticas públicas para ampliar o acesso à reprodução assistida pelo SUS, especialmente para grupos minoritários como casais homossexuais; a regulamentação para garantir um procedimento mais seguro, minimizando os riscos de transmissão de doenças e garantindo direitos legais tanto para as mães quanto para os filhos; a educação e conscientização sobre os riscos e precauções, promovendo maior acesso a exames para os doadores e tentantes; e uma maior proteção jurídica para famílias formadas, evitando judicializações demoradas para o reconhecimento da filiação.”
SV/FS